A desigualdade no acesso ao saneamento adequado no Brasil inclui, além do perfil social, o de gênero e o racial (Jesus, 2020). Logo, mulheres negras, indígenas, quilombolas e periféricas são as mais vulneráveis e afetadas pelas condições ambientais precárias, evidenciando a interseccionalidade das desigualdades de gênero e raça nesse contexto (Rosemberg & Pinto, 1995). Um dos maiores desafios enfrentados por mulheres em diversas partes do mundo é o acesso limitado a serviços de saneamento seguro. Esta carência não apenas compromete a saúde feminina, como também a expõe a riscos de violência e diminui suas oportunidades sociais e econômicas na sociedade.
A conexão entre a deficiência em saneamento básico e a condição sanitária da população é clara, uma vez que a ausência de infraestruturas sanitárias adequadas aumenta o surgimento de doenças causadas pela falta de saneamento. Consequentemente, isso intensifica as complicações na saúde coletiva, particularmente em grupos sociais mais expostos e vulneráveis a riscos, destacando-se, neste aspecto, as mulheres. Por exemplo, se o acesso total ao saneamento básico fosse garantido no Brasil, este poderia diminuir em 63% a ocorrência de variadas doenças ginecológicas em mulheres de 12 a 55 anos de idade (Ministério da Saúde, 2022). Aqui, é importante também ressaltar que a ocorrência de doenças causadas pela insuficiência de água e saneamento impacta também negativamente a capacidade das mulheres de contribuir economicamente e sua eficácia acadêmica (além de limitar diversos outros aspectos da vida). Portanto, a escassez de diversidade de gênero em determinados setores sociais, incluindo o ambiente profissional e instituições educacionais formais, espelha a desigualdade estrutural que ainda persiste na sociedade, a qual é exacerbada pela insuficiência de infraestrutura de saneamento básico (Willets et al., 2023).
Nesse contexto, é essencial que mulheres tenham acesso a água limpa e infraestruturas de saneamento apropriadas ao longo de suas vidas. E, para isso, é vital que, além de identificar as diferenças de gênero no acesso a esses serviços, as autoridades promovam debates, investimento em serviços e pesquisas, e implementem políticas públicas eficazes. Também ressalto aqui uma abordagem complementar que podemos em diferentes frentes considerar e propor para amenizar tais questões de saneamento: soluções sustentáveis e descentralizadas para que tais populações tenham acesso à água segura. Estas soluções não apenas prometem endereçar a urgente necessidade de acesso adequado ao saneamento, mas também apontam para uma redução nas disparidades que afetam desproporcionalmente mulheres e meninas em comunidades menos favorecidas e assistidas pelo poder público.
Precisamos “materializar” práticas de gestão de recursos hídricos centradas na comunidade e na implementação de tecnologias sustentáveis, o que nos possibilitaria vislumbrar um futuro mais equitativo. Projetos que empregam tecnologias de tratamento de água de baixo custo e de fácil manutenção, por exemplo, podem ser particularmente transformadores. Sistemas focados em soluções baseadas na natureza, como os biofiltros, que utilizam materiais naturais e processos biológicos para purificar a água, oferecem uma solução acessível e eficiente para comunidades rurais e periféricas. Além disso, a captação e o reaproveitamento de água da chuva representam métodos sustentáveis que podem aliviar a pressão sobre os recursos hídricos locais e garantir um fornecimento mais estável de água potável. Isso não exclui a demanda por investimentos nas estações de tratamento e nas redes de esgoto. É crucial que áreas mais vulneráveis socioeconomicamente sejam assistidas pelo poder público/privado para maiores investimentos em manutenção e em novas etapas de tratamento nas estações de tratamento de água e esgoto de médio e pequeno porte, a fim de fortalecer e democratizar o acesso à água de qualidade para esta população. Vale destacar que, no atual contexto, é primordial considerar a sustentabilidade de tais projetos e serviços. Para isso, são necessários investimentos e incentivo à pesquisa, emprego de processos e tecnologias mais acessíveis e que demandem menos consumo de energia, manutenção de equipamentos e infraestrutura, capacitação técnica (se possível empregando a comunidade local), entre outros fatores.
Independente do projeto de saneamento, é essencial integrar considerações de gênero no decorrer do seu planejamento e implementação. Para as mulheres, a introdução dessas práticas e tecnologias não só melhora o acesso ao saneamento, mas também pode abrir caminhos para o empoderamento econômico. Nesse sentido, oferecer também programas de capacitação e educação em gestão de recursos hídricos e saneamento às mulheres pode instrumentalizá-las de novas habilidades necessárias para liderarem projetos em suas comunidades. Isso contribui para a promoção da igualdade de gênero e fortalece sua voz e representatividade em espaços de decisão.
Portanto, enfrentar as desigualdades de gênero no acesso ao saneamento requer um esforço conjunto entre governos, organizações não governamentais, comunidades e indivíduos. Mas, para isso, é primordial abordagens que valorizem a inovação, a sustentabilidade e a equidade de gênero. Desafio aqui os leitores a manterem o entendimento de que o direito ao saneamento e à igualdade de gênero ocorrem em sinergia. O acesso ao saneamento não é apenas uma questão de infraestrutura – é uma questão de direitos humanos, de gênero, raça e de justiça social.
Referências
Jesus, V. (2020). Racializando o olhar (sociológico) sobre a saúde ambiental em saneamento da população negra: um continuum colonial chamado racismo ambiental. Saúde E Sociedade, 29(2). https://doi.org/10.1590/s0104-12902020180519.
Rosemberg, F. and Pinto, R. (1995). Saneamento básico e raça. Journal of Human Growth and Development, 5(1-2). https://doi.org/10.7322/jhgd.38149
Ministério da Saúde, 2022. Saneamento e acesso à água para mulheres são temas de projeto lançado pela Funasa [WWW Document]. Setembro. URL https://www.gov.br/saude/pt-br/assuntos/noticias/2022/setembro/saneamento-e-acesso-a-agua-para-mulheres-sao-temas-de-projeto-lancado-pela-funasa
Willetts J, MacArthur J, Carrard N (2023) Gender and water, sanitation, and hygiene: Three opportunities to build from recent reporting on global progress, 2000–2022. PLoS Med 20(10): e1004297. https://doi.org/10.1371/journal.pmed.1004297